TOP 50 LEITURAS DA RAIO LASER EM 2020 - PARTE 1

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por Bruno Porto, Ciro Inácio Marcondes, Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Pedro Brandt

“Cadáveres de animais mortos por coronavírus na Dinamarca ressurgem na superfície”. Sim, você leu certo. Essa manchete foi publicada numa reportagem d'O Globo de 25/11/20. A referida notícia, relativa ao avistamento de doninhas zumbis, informada por um veículo de comunicação aparentemente sério, como o jornal carioca, dá um pouco da medida do que foi 2020, o ano que o incerto foi a única certeza. Mais que um tapa, a pandemia deu um murro tão forte na cara da humanidade que ela está sem rumo até agora. A expectativa de uma mudança de cenário ainda não é muito animadora, vide os relatos de possível mutação do vírus no Reino Unido e do nada improvável surgimento de novas doenças que podem se tornar obstáculos para o estilo de vida do – auto-proclamado – ser vivo mais inteligente do planeta.

Diante de perspectivas não tão alvissareiras, não é de se estranhar que o escapismo tenha se fortalecido em nossa sociedade. Seja por meio de livros, filmes, vídeo games e histórias em quadrinhos, as diversas formas de prazer individual gozaram de crescimento expressivo, conforme amplamente noticiado na imprensa. Não é para menos. Num mundo cada vez mais avesso ao contato pessoal, a tendência é que esse tipo de entretenimento auto-imersivo tenda a aumentar, mantidas as atuais condições de temperatura e pressão. Todos esses fatores, aliados à necessidade/obrigatoriedade de isolamento pessoal fizeram com que a grande maioria de fãs desses tipos de lazer – como o pessoal da Raio Laser – encontrasse mais tempo para dar vazão ao seu hobbie favorito: ler um gibizinho, claro.

O que você tem a seguir são as melhores leituras – sem ordem de preferência - de 50 HQs lançadas em qualquer época – feitas pelo staff do nosso blog em 2020. Se é que é possível extrair qualidade da quantidade, diria que a lista abaixo é mais representativa que aquelas de anos anteriores, visto que o volume leitura de nossos integrantes foi consideravelmente maior. Isso também potencializa as chances de aparecem coisas bizarras. Aliás, se não fosse assim, não seria uma lista de melhores da Raio Laser. Mas não se preocupe. Num ano em que tivemos doninhas zumbis, o que vier é lucro.

Nesta postagem apresentamos os primeiros 25, e na próxima os 25 derradeiros.

A assinatura dos textos está indicada pelas iniciais dos autores ao final de cada resenha. (MMA)

A LISTA:

Mau Caminho – Simon Hanselmann (Veneta, 2020): A vida de “roommates” totalmente “white trash” vivendo miseravelmente de seguro-desemprego, junkismo despudorado, orgias deprimentes e todo tipo de mundiçagem poderia ser motivo para um quadrinho depauperado moralmente e decadentista, sem nenhum tipo de lição para nos passar. E é exatamente isso que Mau Caminho é, e isso é o triunfo de uma visão cética da vida, a triste ilustração de nossas ambiguidades mais intransponíveis. A vida não nos lega lições, ela apenas acontece, como fenômeno que nos atravessa sem que percebamos. Como se fosse uma espécie de Apenas um Show “rated-R” totalmente desencantado e sem qualquer tipo de autocomiseração, esse quadrinho sobre tipos (quase) mundanos e suas relações com afetos diversos, subempregos e hedonismos de toda natureza consegue tocar uma humanidade inerente em sua banalidade mais superficial e ao mesmo tempo em suas densidades mais estruturais. Seguramente uma das coisas mais pungentes produzidas em quadrinhos nos anos 2010. (CIM)

Kent State: Four Dead in Ohio - Derf Backderf (Abrams ComicArts, 2020): Tudo que o cartunista estadunidense adiantou na entrevista que deu para a Raio Laser no início do ano no Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême se concretiza neste que é seu melhor trabalho. A graphic novel, ainda inédita no Brasil, resgata um trágico confronto entre soldados da Guarda Nacional e estudantes que protestavam em maio de 1970 contra a Guerra do Vietnã na universidade do estado de Ohio que batiza o livro. A árdua pesquisa factual e de referências conduzida por mais de dois anos - antes de começar a desenhar - compensou: a arte não se afasta do estilo cartunesco que Derf assumidamente herdou da revista MAD - enxerga-se vestígios dos traços de Sam Viviano, Harvey Kurtzman, Don Martin e outros colaboradores da icônica revista - mas observa-se aqui um cuidado jornalístico em retratar acuradamente a arquitetura, mobiliário, automóveis etc. da época - sem esquecer de toda a indumentária e aparato armamentista - que torna os acontecimentos mais expressivos e contundentes do que se o estilo do desenho fosse de viés realista. A aplicação perspicaz de múltiplos tons de cinza na composição dos requadros geram páginas opulentas em cor, sempre surpreendente quando se trata de uma HQ em preto-e-branco.

O autor constrói um cativante relato dos últimos dias de vida dos quatro jovens mortos no episódio entremeando explicações de caráter sociopolítico, geográfico e de costumes locais, apresentando os múltiplos participantes, diretos e indiretos, da tragédia. Sem interromper o fluxo da narrativa, estas “notas de rodapé” estão eficientemente inseridas na quadrinização, engenhosamente diferenciadas, na grande maioria dos quadros, como longos requadros horizontais. À medida que a história evolui e a violência se intensifica, os requadros vão se ampliando em tamanho, muitas vezes ocupando a totalidade da página. Da mesma maneira, a voz do narrador se intensifica, substituindo explicações e uma insustentável imparcialidade por uma visão incondicionalmente crítica das pessoas e do sistema que acobertaram muito do que se passou. Fato é que, até hoje, 50 anos depois, não se sabe quem deu a ordem para os soldados abrirem fogo. Soa familiar? A obra de Derf resgata a dimensão humana que se perde diante do endurecimento do mundo, em que a sociedade acaba por tornar-se vítima de si mesma. Uma HQ muito apropriada ao nosso tempo. (BP)

Night Business - Benjamin Marra (Fantagraphics, 2018): Caso fosse um brasileiro fodido, não tenho dúvidas que Benjamin Marra seria uma das estrelas do catálogo da Escória Comix. Como é um maldito ianque, está lá, todo pimpão, publicando livros em capa dura pela prestigiosa Fantagraphics. Merecido. Para quem não conhece o quadrinista, poderia defini-lo como uma espécie de Paul Gulacy viciado em crack, e aspirante a diretor das novas aventuras de Cobra – personagem imortalizado no couro grosso de Sylvester Stallone. Night Business tem sexo, violência, vingança, prostituição, armas brancas, armas de fogo, motos envenenadas, amor e redenção. De brinde, deixo a dica da tira diária What we mean by yesterday, que me obriga a visitar o Instagram todo santo dia. Falando nisso, vou lá ver se ele já postou a de hoje. Mais AQUI. (MJR)

Maria Chorou aos Pés de Jesus – Chester Brown (Martins Fontes, 2017): Inspirado em nove histórias do Novo e do Velho Testamento, o canadense Chester Brown investiga, em quadrinhos, episódios de prostituição na Bíblia. Entre o ficcional e o pretenso documental, ele retrata as passagens bíblicas em questão em desenhos estilizados e expressivos e com uma narrativa simples, objetiva e funcional. Tal como em sua obra mais conhecida, Pagando por Sexo, Brown apresenta em detalhes a pesquisa que resultou na HQ. Não se trata de mero “extra”, mas de parte essencial da obra, dado que soma informações para entender não apenas o que está em suas páginas, mas funciona para instigar o leitor sobre os temas ali apresentados, como a própria prostituição e ainda religião, sociedade, gênero e também como uma história secular é formatada ao longo dos tempos. Editorialmente falando, essa publicação da Martins Fontes merece elogios pelo papel pólen de tato muito gostoso e puxado para o amarelo, o que rende leitura agradável; pelo fato de ter sido publicada em formato parecido com o de bolso, proporcionando posição confortável entre as mãos; e, para completar, um letreiramento que simula o manual, o que agrega à beleza desta surpreendente HQ. (PB)

Ruínas - Peter Kuper (Jupati, 2016): George e Samantha despencam dos States para um período sabático em Oaxaca, México – e, num paralelo improvável e poético, uma borboleta perfaz caminho semelhante. Ali, o casal enfrentará o drástico choque entre as culturas das Américas do Norte e Latina, que não deixará pedra sobre pedra em suas vidas. Ao mesmo tempo pessoal e política – característica incontornável da obra de Peter Kuper –, Ruínas ganha tempero extra se lida juntamente com Diario de Oaxaca, fabuloso sketchbook que o autor produziu in loco, no período. Gibi de gente grande. (MJR)

Pinacoderal: Rudimentos da Linguagem – Diego Gerlach (Pé de Cabra, 2019): Seria a cidade de Pinacoderal a alucinação coletiva de um bando de hippies casca grossa, o ponto de encontro de super-heróis crackeiros presos numa realidade de violência gratuita ou o purgatório dos noiados? Não tenho a menor ideia. O que posso afirmar é que o gibi é um pedido de intervenção por parte do autor, cuja esquizofrenia é claramente evidenciada pela irregularidade nos desenhos, que lembram um Steve Rude on drugs. Misturando magia, paranoia e tipos tão bizarros quanto carismáticos, Gerlach nos dá um vislumbre de seu universo particular, irresistivelmente caótico e insano. O gibi coleciona, num belo projeto gráfico de Pedro Franz, algumas das histórias mais marcantes da série, lançada entre 2009 e 2016 em diversos zines independentes como Prego, Zica e Pinacoderal da Parahyba. Imperdível. (MMA)

Reanimator – Juscelino Neco (Veneta, 2020): Juscelino Neco transforma os “medos atávicos” de Lovecraft nas duas únicas obsessões que realmente dizem alguma coisa para o âmago pervertido do ser humano: o sexo e as drogas! Sua nova versão para a famosa (e medíocre) imitação que o autor de Rhode Island fez de Frankenstein traz não apenas uma completa subversão das pudicas ideias de Lovecraft (não que eu não goste dele) com animaizinhos antropomórficos, mas também agrega elementos do clássico filme trash Re-Animator (1985), de Stuart Gordon. O quadrinho é ilustrado com fúria e emana a visceralidade de um shot in the arm (seja lá do quê), como se precisasse comprovar alguma tese básica de Juscelino, tipo “horror cósmico é uma rôla veiúda no cú do mundo.” Mais AQUI. (CIM)

O Alpinista - Victor Bello (Escória Comix, 2019): Norma Leprexau, Charles Bauduco, Pepeu Madovsky, Dr. Camilo Beleza, Guguto Milk, Dr. Megadeth, Marujo Berbigone, Thundervan Ghost e Alpinista Landoni. Só por batizar seus personagens com nomes desse gabarito, Victor Bello já mereceria a alcunha de maior revelação dos quadrinhos brasileiros dos últimos anos. Mas há ainda a narrativa excitante, a imaginação desenfreada e um dos traços feios mais espetaculares da história da humanidade. De modo que Victor Bello é, de fato, a maior revelação dos quadrinhos brasileiros dos últimos anos – e O Alpinista, calhamaço de 220 páginas, uma obra fadada ao posto de clássico. (MJR)

Supermercadinho Brasil – Lobo Ramirez (Escória Comix, 2020): Supermercadinho Brasil funciona como se cada aspecto, digamos, psicossocial que forma a gororoba autoritária que é o Brasil contemporâneo fosse reunida num local específico do espaço-tempo (no caso, um supermercadinho qualquer desses de cidade do interior) e todos fossem soltos lá, como diz o meme, um contra o outro, a 180 por hora. Um policial-de-mullets-psicopata-que-ainda-é-gay-enrustido, um gordinho-incel-raivoso-vestido-de-cosplay, uma dona-velha-evangélica-escrota-e-pervertida, e assim por diante. Lobo Ramirez, conhecido como o “melhor desenho feio do Brasil”, transforma esse chorume numa mistura de filme slasher com Duro de Matar, e o resultado é um melhor debate sobre racismo, feminismo, sociedade brasileira e desigualdade social do que qualquer coisa que um repórter do Huffington Post seria capaz de fazer. Mais AQUI. (CIM)

O Relatório de Brodeck – Manu Larcenet (Pipoca & Nanquim, 2018): A mente é algo terrível de se desperdiçar. A memória, como componente indissociável da mente é o cerne do relato, afinal, trata-se de um ordenamento de impressões, vivências e remorsos. Pobre Brodeck. Forçado pelos habitantes de sua pequena cidade, perdida na fronteira entre a Alemanha e a França, a contar para as autoridades de sua região os eventos que culminaram no assassinato do Anderer, peregrino indesejável e autêntico estranho numa terra estranha. No livro que inspirou o gibi, Philippe Claudel, como todo bom francês, reexamina o comportamento nacional após o fim da Segunda Guerra Mundial e a desocupação nazista daquele país. O revanchismo e os rancores nacionalistas foram desestimulados em nome da reconstrução da pátria. Esse intuito é, no entanto, antagônico à real natureza humana, muito menos altruísta e fraternal quanto gostariam de admitir as autoridades gaulesas. Há questionamentos sobre como se comportaria a coletividade se isolada e oculta dos ideais civilizatórios da paz. O traço de Manu Larcenet contrasta o discurso com os atos, cujas consequências estão longe da civilidade, mas não da consciência. É como se nem o preto nem o branco comportassem os milhões de tons e subtons cinzentos, que salpicam as índoles e os segredos dos conterrâneos de Brodeck. Ler o relatório, que, na verdade, mais elude que esclarece, é tortuoso, é desalentador e faz do esquecimento a saída vital de recuperação, mesmo que se feito sem o necessário perdão requerido pela árdua e recém-conquistada paz. (MMA)

A Grande Odalisca/Olympia – Bastien Vivès & Ruppert & Mulot (Pipoca & Nanquim, 2019/2020): Depois da leitura de A Grande Odalisca e Olympia é inevitável não pensar em outras série protagonizadas por trios femininos, como As Panteras e Três Espiãs Demais. E parte da graça dessas duas leituras vem justamente desse tipo de comparação que, num primeiro momento, poderia afastar alguns leitores. Mas o que se vê aqui é justamente uma quebra dessa expectativa. Ainda que nada no enredo dessas HQs seja exatamente novo – mas muito bem amarrado, que fique claro –, a maneira como a história é apresentada, entretanto, é o grande destaque. A arte é ao mesmo tempo sintética e extremamente expressiva, conjugada em uma paleta de cores bela e de personalidade. As “coreografias” e a decupagem das cenas de ação resultam em sequências dinâmicas de tirar o fôlego. E em meio a tudo isso, ainda sobra espaço para o carisma do trio de protagonistas (ladras especializadas no roubo de obras de arte) em tramas com boa dose de mistério, deixando curiosidade no ar para a continuação. (PB)

A Casta dos Metabarões, vols 1 a 8 - Alejandro Jodorowsky e Juan Giménez (Les Humanoïdes Associés, 1992-2003): Admito que o falecimento do desenhista argentino Juan Giménez em 2020 foi o pontapé inicial para que eu finalmente tirasse esse clássico do quadrinho mundial da pilha de espera de leitura. Os Metabarões são os maiores guerreiros da galáxia e o manto é passado de pai para filho. O problema é que cada novo Metabarão deve provar seu valor derrotando – e matando – o próprio genitor no primeiro duelo. Numa saga que atravessa os recônditos espaciais mais sujos da galáxia, Jodorowsky nos faz navegar pela lisergia de sua mente insana, com direitos a doses nem sempre homeopáticas de mutilação, incesto e até mesmo autofecundação. Numa aventura em que o novo já nasce velho e a morte é a única companheira, a casta dos Metabarões vai ter que pagar preços cada vez mais altos para continuar existindo. E poder presenciar tudo isso sob a batuta da arte deslumbrante e ultra-detalhista de Giménez é uma experiência catártica e divertida. Quer sci-fi de qualidade? Fuja de tolices como Star Wars e leia esse gibi. Mais AQUI. (MMA)

Inside Moebius, Part 2 – Moebius (Dark Horse, 2018): Jean Giraud, o autor francês Moebius, em uma trip dentro de sua própria mente, em um passeio por seus cenários, personagens e dilemas. Esta é uma obra bem menos radical em linguagem e muito mais bem humorada do que se espera do quadrinista. Ao mesmo tempo, talvez, seja de maior interesse para fãs do autor, familiares com sua produção. Se este é o seu caso, o álbum – e os outros dois números que completam a série – é um deleite. Aqui encontramos um Moebius mais convencional e um tanto redundante, é verdade, mas com uma arte renovada, mais simplificada, ainda que bela e instigante, com uma paleta de cores em tons pasteis e discreto uso de recursos digitais. E a edição da Dark Horse é luxo só! Capa dura, papel couchê do melhor, e ainda farto material complementar, com páginas e mais páginas de notas explicativas. (PB)

Paulette II – Wolinski e Pichard (Folio, 1981): Os pais da voluptuosa personagem Paulette, o roteirista Georges Wolinski e o desenhista Georges Pichard, parecem não gostar de perder uma oportunidade sequer de seduzir o leitor: o primeiro, sempre com uma situação engraçada ou uma diálogo cômico, geralmente carregado de ironia e mostrando o quão cretino é o ser humano; o segundo, com uma arte inconfundível, de mulheres belas e carnudas, construção de páginas fluídas, que não se repetem, sendo realista nos cenários e objetos, mas oníricas no tom. Delírio, aliás, é palavra-chave para entender essa HQ francesa: em suas aventuras, a loira Paulette é acompanhada pela morena Joseph, um velho safado preso no corpo de uma mulher estonteante. Neste compilado de pouco mais de 200 páginas, a carismática dupla de protagonistas mais uma vez está ao sabor do vento, visitando diversos países, passando por metrópoles, selvas, desertos, circos e acampamentos, entre indígenas, nazistas, beats, motoqueiros e outras figuras, quase todas interessadas em suas generosas curvas. Pretensas vítimas, elas têm sempre a palavra final neste pequeno álbum em que tudo é rocambolesco, sensual e extremamente divertido. A edição de bolso francesa, lançada em 1981 pela editora Folio, para completar, ainda tem uma impressão maravilhosa, na qual tudo está em seu devido lugar, ainda que as páginas tenham sido diminuídas para chegar nesse formato. Mais AQUI. (PB)

Sheiloca – Lovelove6 (Independente, 2019): Lovelove6 é a grande autora de sua geração, não apenas pela qualidade indiscutível de sua arte, mas também por seu posicionamento diante do mercado e a postura de se manter independente, praticando a autopublicação, mesmo quando certamente muitas editoras devem ter-lhe feito propostas. Talvez por isso um quadrinho incrivelmente sofisticado e profundo como Sheiloca tenha passado meio em branco por críticos e influencers. Também pudera: apesar de seu design simples, com pouca decupagem nas páginas e requadros grandes e expressivos (foi publicado originalmente no Instagram), este quadrinho diz muito em sua economia de signos e recursos. Aqui, tudo remete a uma misteriosa, arcaica e umbral comuna de mulheres elaborada na forma de mito que procura deixar pistas sobre como sugiram os diversos tipos de expressão e subjetividade femininas. Nesta mitanálise metafórica do mundo, a mulher, que dá a vida, que concebe, que abraça, que comunga, é expressão de todas as coisas. Tudo é mulher, na utopia purpúrea, em arte de linhas grossas e cores psicodélicas, de Lovelove6. No cenário brazuca em que tanta coisa marromeno é saudada como genialidade, de vez em quando é bom reconhecer quando arte de verdade emerge. Mais AQUI. (CIM)

Fujie e Mikito - Yuri Andrey e Marcelo Costa (Mino, 2019): Financiada pelo Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo (ProAC), a graphic novel se originou a partir do trabalho de conclusão do curso de jornalismo do roteirista Yuri Andrey, produzido cerca de uma década atrás. A HQ tem início com a imigração de uma família japonesa da província de Yamaguchi para o Brasil no final dos anos 1950, estabelecendo-se no interior de São Paulo como agricultores, e vai até a contemporaneidade, onde o amigo de uma descendente do casal - que batiza a HQ - colhe este relato. A passagem do tempo é sutil e seus saltos muito bem construídos na narrativa visual, que tem a presença constante dos costumes e da cultura japonesa. A arte de Marcelo Costa é bem sucedida na opção por uma abordagem fortemente atemporal nos flashbacks que constituem a maior parte do relato, distanciando-se dos aspectos sociopolíticos das diferentes épocas. Isso garante à HQ não apenas manter o foco na relações familiares, como corrobora o conceito de que o relato oral não se apega em detalhes. As caracterizações dos personagens - baseados em pessoas reais, incluindo o alter-ego do coautor - encontram o tom certo que permite que nos identifiquemos com os episódios que vão compondo a longa e sofrida epopeia. A sensação ao término da leitura é a de não querer deixar os personagens desaparecerem, embora a revelação final da graphic novel encerre de forma comovente a obra, que levou a Medalha de Bronze no 14º Prêmio Internacional de Mangá do Japão 日本国際漫画賞 e ficou entre os cinco finalistas do Prêmio Jabuti 2020 na categoria História em Quadrinhos. (BP)

Ritos de Passagem: Quando Éramos Irmãos – Lucas Marques (Avec Editora/FAC – Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal, 2020): A infância, com suas descobertas, aprendizados, traumas e alegrias, é o pano de fundo da nova obra do desenhista e roteirista brasiliense Lucas Marques. Inspirada em vivências do próprio autor, Ritos de Passagem – Quando Éramos Irmãos consegue suplantar o que poderia ser uma história piegas e convencional ao não subestimar a complexidade de como sentem e agem as crianças, algo que Lucas consegue não apenas no roteiro, nos diálogos e nas situações apresentadas – entre elas, bullying, quase morte e, especialmente, amizade –, mas principalmente na condução visual da trama, ilustrada, com competência e pluralidade de recursos, em estilo mangá. Sensível e bem executada, Ritos de Passagem – Quando Éramos Irmãos provou seu potencial de comunicação universal com o prêmio no 13º Japan International Manga Award. Para quem é de Brasília, a HQ tem um algo a mais, ao apresentar cenários locais, em específico, o Guará, bairro onde mora o autor. (PB)

UGRITO #21: Eu Fiz uma História em Quadrinhos - Fabio Zimbres (Ugra, 2020): A coleção Ugrito é das empreitadas editoriais mais importantes dos quadrinhos nacionais. Uma passada de olhos pelos 21 títulos já publicados oferece um panorama pra lá de consistente do que seria a “HQ brasileira contemporânea que presta”. Finalmente publicar em suas páginas Mr. Fabio Zimbres – musa inspiradora dos Ugritos – é uma espécie de cereja do bolo. Afinal, quando Zimbres encosta o lápis no papel para fazer quadrinhos – algo infelizmente raro nos últimos tempos –, sabemos de imediato que nasce, bem ali, uma das leituras do ano. (MJR)

El Eternauta – Héctor G. Oesterheld e Solano López (Ediciones Record, sd): Todos conhecem a premissa: uma mortal nevasca incide sobre uma Buenos Aires dos anos 1950 e Juan Salvo e sua família, juntamente com o professor Favalli e outros amigos, isolam-se numa casa e cada saída (dentro de um traje hermeticamente fechado) torna-se uma aventura num contexto que, mais tarde, todos descobrirão ser o de uma invasão alienígena. Durante os primeiros meses da quarentena, no Brasil e no mundo, boa parte da população sentiu na pele os calafrios sentidos pelos personagens d’O Eternauta. Daí o fato de esta velha HQ argentina ter se tornado, de certa forma, símbolo da distopia de 2020.

Seria muito difícil dissertar sobre toda a genialidade da obra em um texto tão enxuto, então ressalto resumidamente apenas três pontos: 1) O Eternauta foi publicado originalmente em forma de tiras no hebdomadário argentino Hora Cero entre 1957 e 1959. Logo, está condicionado às contingências (digamos, limitantes) deste tipo de publicação. É uma HQ clássica, enclausurada pelo formato dos quadros e da periodicidade, mas isso em nenhum momento impede que seja suspense e ação eletrizantes, avançando a galope com cada tira, deixando-nos ávidos por reconhecer toda uma realidade social, política e tecnológica que vai se descortinando. É o estilo clássico no seu auge. 2) O Eternauta é fortemente carregado de falas longas, recordatórios introspectivos em primeira pessoa e todo tipo de reflexão de natureza filosófica/existencial sobre a vida e a morte, o comportamento humano em situações limítrofes e o conflito do indivíduo contra a sociedade em vários níveis. Um trabalho literário de alta qualidade que em nenhum momento diminui sua importância enquanto quadrinho. 3) Por fim, como é sabido, O Eternauta é uma mensagem política sobre o assédio das nações poderosas sobre outras em desenvolvimento, em escalas às vezes invisíveis para os atores deste tipo de relações internacionais. Algo que em nenhum momento é explicitado ou esclarecido com pistas desnecessárias. Tudo fica numa latência típica de quem domina a linguagem simbólica, algo que ficaria cada vez mais distante nas obras posteriores escritas por Oesterheld. Mítico, para dizer o mínimo. Mais AQUI. (CIM)

Nausicaä of the Valley of Wind Perfect Collection – Hayao Miyazaki (Viz Communications, 2002): Tudo em Nausicaä é exagerado. O número de páginas, a quantidade de personagens, o esforço insano demandado pelo autor para desenhar uma obra dessa envergadura e etc. O conflito de proporções épicas que se desenvolve nesse mangá com M maiúsculo também não foge a esta regra. Num planeta Terra contaminado por gases tóxicos, onde insetos gigantes apavoram cidadãos incautos, a princesa Nausicaä luta pela sobrevivência de seu povo, sempre cercado por vizinhos hostis e gananciosos, que usarão dos meios mais nefastos para tentar satisfazer seus desejos de conquista. Um deles é a ativação do Deus da Guerra – singela metáfora para o perigo das armas atômicas – que poderá significar a ruína definitiva para todos, sejam culpados ou inocentes. Com uma mensagem de conscientização ambiental subjacente, o workaholic Miyazaki fez de sua primeira e única incursão no mundo da nona arte um verdadeiro desbunde, capaz de emocionar fãs de epopeias como Senhor dos Anéis e Game of Thrones. Outra coisa que impressiona é o tamanho da modéstia do autor. Após terminar Nausicaä, concluiu que não tinha talento para gibis e desistiu deles, passando a dedicar-se full time às suas premiadas animações. Santa humildade, Batman. Boato forte diz que a saga completa sairá em breve no Brasil pela editora JBC. Tomara. (MMA)

Frankenspato de Mary Shelduck – Bruno Enna, Fabio Celoni e Luca Merli (Panini, 2020): Não cheguei a ler as outras “Graphic Disney” adaptando clássicos da literatura para o universo de Mickey e cia, e pouco me importo se tem gente reclamando que substituíram sangue por suco de tomate na versão de “Drácula”. Frankenspato pode não ser (obviamente) uma tradução literal do livro de Mary Shelley, mas captura com classe e ilustrações impactantes, plásticas, góticas, toda a miríade de sentimentos e afecções (a criação, a posse, a inveja, a ambição, a rejeição, a loucura) que tornaram o curto romance (escrito como uma brincadeira) da autora inglesa num clássico que permite infinitas reinterpretações. Muito devido às ilustrações poderosas, cheias de vida e movimento, de Celoni, e também à paleta de cores improvável e venal, com seus contrastes entre verde e vermelho, de Merli, que trabalham com consistência referências de outras encarnações do monstro e respeito ao romance original. Vale uma chance, hein? (CIM)

Mulheres & Quadrinhos - Dani Marino & Laluña Machado (Org., Skript, 2019): Esta é uma obra curiosa para constar de uma lista de Melhores Quadrinhos do Ano, ou o que o valha, por não ser exatamente - ou somente - isso. Este é um livro híbrido que entremeia histórias em quadrinhos e textos sobre quadrinhos, produzidos por mulheres quadrinistas, ilustradoras, pesquisadoras acadêmicas e profissionais da comunicação (jornalistas, editoras, tradutoras, designers etc) - muitas inclusive vestindo mais de um chapéu. Embora seja comum a existência de prefácios, glossários, notas, seções de cartas, etc., nos diversos tipos de publicações de quadrinhos, este livraço divide em iguais proporções suas 500 páginas entre HQs (e algumas ilustrações pin-ups) e artigos, depoimentos, entrevistas, reflexões e outros gêneros textuais. Não é um livro teórico ilustrado com exemplos nem tampouco um livro de quadrinhos com textos que os discutem. Apesar de não existir relação direta entre os textos e as HQs que os circundam - e, claro, vice-versa - é possível observar uma agradável subjetividade nos diálogos criados pela edição.

A grande diversidade de participantes - mais de 100 mulheres brasileiras (e duas estadunidenses, a quadrinista Trina Robbins e Athena Finger, neta de Bill Finger, cocriador do Batman) de diferentes gerações e bagagens - é ao mesmo tempo o ponto forte e o fraco da obra. Ponto forte por atender a uma necessidade urgente de mapear o estado da arte da atuação feminina no campo dos quadrinhos no Brasil contemporâneo. A opção pela pluralidade de formatos além das HQs, e dentro dos próprios gêneros textuais (artigos, entrevistas, ensaios etc.), permite a construção de uma panorama mais abrangente de como as mulheres se inserem, vêem e lidam com os quadrinhos. Um exemplo: a sentida ausência dos trabalhos de profissionais brasileiras atuantes na pujante indústria estadunidense de quadrinhos de Super-Herói - como Adriana Melo, Bilquis Evely e Cris Peter, entre outras - é parcialmente suprida por menções nos textos. Ponto fraco pois não há como negar o desequilíbrio na qualidade dos trabalhos selecionados, tanto textos como quadrinhos, ao se justapor profissionais veteranas e iniciantes.

Para detrimento de alguns nomes, destacam-se artigos mais bem escritos, reflexões mais profundas e entrevistas melhor conduzidas, com o mesmo acontecendo nos quadrinhos, principalmente pela grande quantidade de trabalhos de caráter mais intimista e pessoal, que naturalmente levam a comparações. Neste sentido, portanto, sobressaem especialmente as HQs de nomes como Alice Pereira, Aline Zouvi, Cátia Ana, Cecília Ramos, Cris Eiko, Débora Kamogawa e Renata Rinaldi, e os pin-ups de Ariane Rauber, Bianca Nazari, Fernanda Montoni, Flávia Borges, Laís Bicudo e Paula Cruz. Longe de encerrarem-se neles mesmos, são trabalhos que atiçam o interesse por outras produções de suas autoras, incentivando futuras leituras. A obra é complementada - ou expandida - por um e-book gratuito, intitulado Mulheres & Quadrinhos: Universidade, com a íntegra de alguns artigos que não puderam entrar na edição impressa. Mulheres & Quadrinhos levou dois Troféus HQMIX, como Melhor Publicação Mix e Melhor Livro Teórico de 2020. (BP)

Silvestre - Wagner Willian (Darkside, 2019): A essa altura, Jabuti na capanga, parece desnecessário falar de Silvestre. Mas eu falo mesmo assim. O que mais me enfeitiça na HQ – e na obra de Wagner Willian de um modo geral – é sua ambição sem limites. O que escorre de suas belíssimas páginas é a destemida busca de um artista por criar algo que seja visceral e relevante para si próprio. Um salto no vazio, sem rede de segurança. Nada de virtuosismo gratuito – e estamos falando de um dos ilustradores mais impressionantes do planeta. É possível – e dramático, e lírico – ver Wagner William se debatendo em Silvestre, por Silvestre e contra Silvestre. O resultado não é uma HQ perfeita, mas uma HQ que carrega toda a singularidade do autor. Mais AQUI. (MJR)

Desistência do Azul – Leandro Melite (Zarabatana, 2012): Desistência do Azul é o primeiro trabalho longo de Leandro Melite. Pena que – desde a época de seu lançamento até agora – ninguém deu muita bola para a obra, o que é um tremendo pecado. Afinal, em sua graphic novel de estreia, o autor paulistano já chegou dando uma voadora na mediocridade, com uma intrincada narrativa sobre memória e imaginação. Bebendo forte do traço de Mutarelli e tomando emprestado um pouco de sua melancolia, Melite entrega um gibi desconcertante, que se revela uma experiência mais sensorial que cartesiana. Como um fluxo mental, a história ocorre de forma não linear, com direito a cortes abruptos, sem maiores explicações. A galeria de personagens é bizarra, com seres de formas e expressões inusitadas, tão alienígenas quanto fantasmagóricas. A arte, que oscila freneticamente entre distorção e realismo, é um convite para que o leitor abandone qualquer tentativa de seguir convenções. De que se trata o gibi? Bem, o enredo básico é acompanhar a saga do pequeno Lucius Tundra em busca de seu chapéu azul desbotado. Durante a leitura muitas vezes me questionei se o protagonista era um sujeito normal numa realidade absurda ou o contrário. Mas isso é o que menos importa. O fundamental aqui é se deixar levar sem fazer muitas perguntas. Claro que essa viagem será errática e confusa. Como nossa memória. (MMA)

A Volta do Fradim/A Volta da Graúna – Henfil (Geração Editorial, 1994/1993): O Brasil é prodigioso em produzir personagens de quadrinhos escrotos e felasdaputa, mas lendo estas reedições dos anos 1990 das tiras de Henfil, fico pensando se alguém por aqui já concebeu um personagem mais subversivo do que o Fradim Baixinho. Lendo essas tiras, capturadas a dedo de publicações como Pasquim, Revista do Fradim e O Estado de S. Paulo, encontramos, nas linhas simples de Henfil (quase garranchos feitos por crianças – porém com uma rara capacidade de expressar sinteticamente) uma mente em surto, tresloucada, anárquica. O sadismo do Baixinho, às vezes feito de puro delírio decantado no ódio apontado contra qualquer coisa (tipo um mendigo, um índio, um suicida ou até sobre a então-recém-finada Leila Diniz), às vezes também acertava na crítica agressiva, sem papas na língua, contra a polícia, o governo militar, o establishment cultural da época, etc. Como contraste, estava lá o fradim “hippie”, ingênuo e pacifista, Comprido. Uma proeza publicada por mais de duas décadas, tendo influenciado claramente as mentes de Angeli, Glauco e outros, até a selvageria atual de uma Escória Comix. Henfil chegou a publicar a série por um Syndicate nos EUA, mas o Fradim foi rejeitado em solo ianque supostamente por ser aloprado demais. O gibi da Graúna, por sua vez, trata mais abertamente dos problemas políticos e sociais do Brasil, não sem o mesmo sarcasmo por vezes irritante, por vezes grosseiro, quase sempre certeiro e genial. Henfil eterno. Mais AQUI. (CIM)